CULTURA ESCOLAR POR MEIO DE CONCEPÇÕES E SABERES EM PROJETOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES1 Rosa Lydia Teixeira Corrêa-PUC/PR? Resumo: Este trabalho apresenta resultado parcial de pesquisa desenvolvida por meio do projeto intitulado “Concepções educativas e saberes na formação de professores: uma reconstituição histórica sob a ótica da cultura escolar” que abrange o período compreendido entre 1900 e 1970. Os dados analisados provêm do arquivo de uma instituição de formação de professores e incidem sobre concepções e saberes que estão contidos em três documentos. Apreciá-los permite constatar que existem concepções de formação distintas em um mesmo projeto, ao mesmo tempo em que princípios da educação nova se mantém em todos eles, o que está sendo entendido como um dado da cultura escolar. Abstract This work presents partial results of research developed by means of the project entitled “Educative conceptions and knowledge in the formation of professors: a historical reconstitution under the optics of the school culture” that encloses the period from 1900 to 1970. The analyzed data come from the archive of an institution of formation of professors and fall upon conceptions and knowledge that are included in three documents. To appreciate them allows to evidence that distinct conceptions of formation in one same project exist, at the same time where principles of the new education are keep in all they, what it is being understood as data of the school culture. 1. Introdução Este trabalho resulta de dados obtidos no arquivo de uma escola de formação de professores o Instituto de Educação do Paraná cuja origem encontra-se nas Leis de nº 238 de 19 de abril de 1870 e na n° 456 de 12 de abril de 1876. Integra a pesquisa desenvolvida por meio do projeto intitulado “Concepções educativas e saberes na formação de professores: uma reconstituição histórica sob a ótica da cultura escolar” que abrange o período compreendido entre 1900 e 1970. Entendo que concepções educativas e saberes fizeram parte de projetos de formação docente, levando em conta características sociais existentes nos momentos históricos nos quais subsidiaram a formação de professores. A relação entre concepções e saberes é importante na medida em que são duas dimensões fundamentais que se inter-relacionam no fazer pedagógico que não podem ser compreendidas isoladamente. Desse modo, concepções educativas e saberes se articulam de maneira difusa ou claramente definida. Nesse sentido, decorre de uma proposta de investigação que se situa substancialmente no campo das idéias pedagógicas e que pretende ser enfocada tendo por base a idéia de cultura escolar. Embora as idéias pedagógicas possam ser analisadas em sentido amplo no que pese a incorporação de certas concepções educativas pelo sistema de ensino, ao serem transpostas para o interior da escola adquirem singularidades atribuídas pelos sujeitos que idealizam o projeto de formação no interior de instituições formadoras. Concepções e saberes são analisados a partir de três documentos daquela escola, apontando para o entendimento sobre a prevalência de um mesmo ideário, portanto de uma mesma concepção educativa da qual demandam saberes a serem aprendidos pelos professores em formação e que integram Projetos organizados em momentos históricos diferentes. De dois ideários existentes um deles permanece: a concepção escolanovista. Esta permanência está sendo entendida como cultura escolar sobre a qual posteriormente tecerei melhores considerações. Por outro lado, a apreciação desses documentos me permite falar da existência de uma particularidade, ou seja, um modo específico de idealizar a formação de professores, indicando para uma especificidade daquela instituição que pode assinalar um dos aspectos da sua cultura, distinguindo-a, por assim dizer de outras. Para Viñao (2001) puede ser que exista una única cultura escolar, referible a todas las instituciones educativas de un determinado lugar y periodo, y que, incluso, lográramos aislar sus características y elementos básicos. Sin embargo, desde una perspectiva histórica perece más fructífero e interesante hablar, en plural, de culturas escolares. (….) (….). No hay dos escuelas, colegios, institutos de enseñanza secundaria, universidades o facultades exactamente iguales, aunque puedan establecerse similitudes entre ellas. Las diferencias crecen cuando comparamos las culturas de instituciones que pertenecen a distintos niveles educativos. (…) Essa perspectiva ao mesmo tempo em que não me permite fazer generalizações, me possibilita falar de modos como sujeitos e grupos reagem a reformas educativas. Importa destacar que embora reconheça à importância de situar historicamente a instituição formadora este não é um dos propósitos deste trabalho, bem como o momento social, político e econômico nos quais os conteúdos dos Projetos aqui analisados foram elaborados. 2. Conceituações necessárias Na história do pensamento pedagógico as concepções pedagógicas se traduzem por meio de diferentes teorias, (SUCHODOLSKY, 2000; SAVIANI, 1991; FREIRE, 1983; Dewey 1971; Rousseau 1995) que têm preocupações pedagógicas e sobre a maneira através da qual o sujeito apropria-se do conhecimento, tendo como preocupação central o entendimento sobre como a aprendizagem se realiza. Tais concepções podem variar ao acompanharem, no tempo, exigências sócio-históricas. Elas são aqui abordadas como integrantes do complexo que constitui a cultura escolar, levando em conta que orientam a organização do trabalho educativo na escola e, por serem princípios, terminam por configurarem-se como um conjunto de normas que definem saberes a ensinar e condutas a incorporar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses saberes e a incorporação desses comportamentos, normas e práticas ordenadas de acordo com finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem que leve em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas normas e, portanto, a pôr em ação dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores (Juliá, 1993, p. 15). Além desse entendimento de cultura escolar e em decorrência das constatações da permanência de uma concepção educativa naquela instituição ainda nos anos de 1970, o conceito de cultura de Viñao (2001), me parece oportuno já que para ele cultura escolar sería em síntesis algo que permanece y que dura; algo que lãs sucessivas reformas no logram más que aramar superficialmente, que sobrevive a ellas, y que constituye um sedimento formado a lo largo del tiempo. (....). (p. 29). Penso que os dois conceitos se complementam justamente por que este último se dá na tentativa de o autor responder por que as reformas educativas fracassam. Para tanto lida com a idéia de permanência que indica certos modos de resistências dos sujeitos que não são propositadas uma vez que fazem parte de uma cultura própria da escola e que, por essa razão acham-se incrustadas na mesma. Da cultura escolar fazem parte os saberes escolares (Tardif, 2002), uma vez que eles consubstanciam os próprios conhecimentos a serem construídos/elaborados pelos professores em formação que, por sua vez originarão um saber-fazer próprio do espaço educativo/escolar, fundamentais, portanto para a atuação docente futura. Segundo esse autor são saberes originados e/ou provenientes da formação profissional para o magistério (idem, p. 63). Os saberes escolares conectam-se à idéia de disciplinas escolares como um modo de disciplinar o espírito, quer dizer, de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte (CHERVEL, 1990). Assim, as disciplinas escolares são portadoras de conhecimentos que originam saberes que, por sua vez, contribuem para o desenvolvimento do intelecto, enfim, do sujeito como um todo. Os saberes tem natureza e finalidade diferenciadas em função de suas especificidades. Por isso, no conjunto de um ideário de formação se consubstanciam também por meio na grade curricular e adquirem um sentido maior, o da formação de um educador em certo tempo e espaço histórico, na medida em que orientam para comportamentos, hábitos, atitudes e fazeres em face de necessidade de aprendizagem de certas práticas de finalidade educativa formal. As concepções, por se constituírem no ideário de formação que têm origem em teorias educacionais são o sentido do fazer pedagógico porque os justificam, orientando-os para finalidades específicas, por meio de práticas orquestradas para esse fim, segundo os objetivos da formação. Por essa razão,visam à formação dos alunos, levando em conta a formação social que se espera em longo prazo. 3. Concepções saberes na formação de professores. Como assinalamos na introdução, concepções e saberes serão analisados a partir de dados obtidos por meio de três documentos do Instituto de Educação do Paraná: um Regimento escolar do ano de 1965, aprovado em 1966, um Projeto de Implantação da Reforma de 1971 (lei 5.692), cujo documento data de 1972 e um Projeto de formação de professores para a educação pré-escolar do ano de 1978. Esses documentos estão sendo entendidos como objetos culturais, porque portadores de idéias e valores educacionais que foram incorporados e veiculados por sujeitos formadores. 3.1. Concepções e saberes de formação do professor no Regimento escolar O primeiro documento, o Regimento Interno (RI-1965) prenuncia-se bastante inovador pelas características democráticas anunciadas e no modo pelo qual suas bases foram pensadas quanto aos princípios da formação de professores. Indica por meio do que denominam de “o método de trabalho”, os procedimentos por meio dos quais buscaram organizar os ideais de formação. È importante destacar que esse Regimento vigorou até década de 1970 e que seus ideais democráticos continuaram em vigor mesmo no interior do Regime de exceção. Os educadores que o elaboram dizem que o mesmo foi feito em face da necessidade de elaboração de um novo Regimento que correspondesse as então “atuais necessidades humanas e período de transição, em que há urgência de fundir e modernizar o conteúdo do currículo e a organização do ensino, tendo em vista o grande desenvolvimento do saber humano no campo social, psicológico, filosófico, e pedagógico...” Esse documento se pauta pela lei 4024/61 incorporando também ideais educacionais presentes na pedagogia da Educação Nova. Os princípios da escola democrática têm ai suas raízes. A singularidade desse documento reside no fato de ter sido elaborado um ano após o golpe militar e persistir idealizando relações democráticas no interior da escola e da sociedade, provavelmente por entendê-la em processo de transição. Este é um aspecto que demanda um entendimento de cultura escolar na acepção posta acima por Viñao no sentido da permanência na escola de princípios educativos que poderiam ser considerados extemporâneos á época nos quais foram veiculados, principalmente em relação ao ideal de sociedade democrática. Da reunião da Congregação de professoresi, saiu a decisão de que deveria ser eleita uma Comissão para elaboração do Regimento, o que foi feito por aclamação nessa oportunidade. Eleita, a comissão definiu os passos a serem seguidos posteriormente. Entre, eles o de "realizar entrevistas pessoais que ajudariam na consecução dos objetivos do estudo, com professores do Instituto de Educação do Paraná, Professores de Escolas Normais, Técnicos de Ensino, locais e internacionais, figuras representativas da comunidade, professores diplomados pelo IEP há cinco, dez e mais anos, professores principiantes e estudantes” (Regimento Interno do IEP, p. 5)ii. Era sem dúvida uma inovação chamar à participação pessoas de diferentes segmentos ligados à formação e atuação de professores, num período no qual, do ponto de vista da gestão educacional, as questões relacionadas ao exercício democrático de administrar instituições educativas não estavam em pauta, principalmente em termos teóricos. Destaque-se que esta é uma tônica nos depoimentos de entrevistados quando ressaltam e necessidade de trazer a comunidade e/ou estimular a relação com esta, como parâmetro para a formação professores. Da leitura desse documento é possível apreender dois modos de concepção de educação e, por assim dizer, de formação de professores, que ora se entrecruzam e ora se afastam. Um decorrente do entendimento da comissão que o elaborou e outro, advindo dos diferentes sujeitos consultados. Neste trabalho trataremos apenas dos ideais da Comissão. A concepção de formação desse grupo acha-se em praticamente em todo o documento, o que não poderia ser diferente. Em, “As Dimensões da Tarefa Educativa”, seus ideais estão delineados, por meio da preocupação com a formação em relação à sociedade, o currículo, a aprendizagem, a avaliação e os meios de ensino. A separação entre os quatro últimos itens denota entendimento parcelar do conhecimento no interior da idéia de currículo. Passemos a apreciação de cada um deles. A sociedade é caracterizada como passando por “modificações complexas e contínuas”, que evidenciam “desajustes entre o avanço tecnológico e as instruções sociais”, causando, consequentemente o “desajuste cultural”. Vale dizer que esse entendimento revela a preocupação com a necessidade de a escola corresponder às exigências urbano-industriais em franco aprofundamento nesse período nas principais capitais brasileiras. Correspondentemente a essa caracterização da sociedade brasileira, a escola precisa transformar-se para ser um agente de “ajuste social e individual” das novas gerações à sociedade em transição. Neste particular constata-se também forte influência da psicologia comportamental no sentido de que o indivíduo enquanto individualidade precisa condicionar-se, adaptando-se aos novos tempos. A idéia de adaptação social também está presente em Dewey (CUNHA, 1994), ao argumentar que o ser humano ao interagir com o meio ambiente o faz num processo de adaptação. “A experiência, conceito básico da filosofia deweyana, significa a “interação do organismo e do meio ambiente, que redunda nalguma adaptação para melhor utilização deste mesmo meio ambiente” (idem. p. 30). O currículo é o principal centro irradiador da execução da função social da escola, por meio de formação para o desenvolvimento de potencialidades calcadas nos princípios do individualismo e do ativivismo, por exemplo: “É de grande responsabilidade da escola, através de seu currículo, concorrer para o desenvolvimento do indivíduo em toda sua potencialidade, respeitando as diferenças individuais. A sociedade democrática cristã necessita de personalidades integrais, capazes de sentir verdadeiros valores, de tomar posição e de agir e, consequentemente converter-se em portador de valores. A sociedade necessita de indivíduos portadores de uma armadura intelectual e moral – principais sustentáculos da ação – que se constituem em foco de energia de onde nascerá um mundo melhor” (p. 6, grifos nossos). Princípios da educação nova podem ser constatados mais uma vez no trecho a seguir: “É preciso que o educador esteja voltado para o futuro – resultado do presente – e, para as novas condições impostas à ação. Mas só se compreenderá se cada novo instante se ajustar a ação a certas formas novas de pensar e de querer que são sociais, considerando-se que viver é afirmar-se e realizar-se. É preciso viver pela experiência o porquê e o como das ações” (grifos no original). Percebe-se o desejo de formação voltada para a atuação, para o fazer pedagógico direcionado às aspirações sociais. Parece haver o anuncio para o exercício de uma prática, distinguida como experiência que tanto pode vincular-se ao ideal pedagógico empirista que pode ser encontrado nas referidas Lições de Coisas (Valdemarin, 2004), quanto ao pensamento da Educação Nova de Dewey (CUNHA, 1994). A ação se manifesta como fundamental na formação porque que ela precisa ser compreendida tanto em termos de razão como de finalidade do trabalho educativo na escola. Nesse universo de compreensão a educação adquire substancial importância, pois além de permitir a emancipação humana, é também fator de propulsão social na medida em que proporciona progresso, desenvolvimento, enfim, avanço social. A razão, a experiência e os sentidos são tomados como centrais no processo de aprendizagem e são também condições para formar individualidades que concorrerão para o sucesso próprio e social (Valdemarin, 1998). Essa autora salienta que “o homem educado é projetado como um ser capaz de autoconduzir-se por meio de suas capacidades racionais desenvolvidas, cuidando da sobrevivência individual por meio da participação econômica e política” (idem, p. 90). Desse modo para os idealizadores da futura formação de professores “uma educação que considera as diferenças individuais teria como resultado personalidades com características bem marcadas, dotadas de força espontânea, auto-expressão e auto-determinação. Só assim o indivíduo é capaz de preservar e melhorar a forma democrática de vida” (regimento, p. 6). Além das possibilidades que os novos modos de conhecimento atribuem ao sujeito há o potencial individual do qual é detentor, cabendo a educação impulsioná-lo em direção ao sucesso social. Seguindo a lógica da experimentação, a aprendizagem é em si um “processo experimental do qual participa todo o organismo humano” (idem), desde que ela seja significativa e útil ao crescimento individual. Assim, a experiência neste entendimento correlaciona-se ao pensamento de Dewey (1979), pelo significado do objeto de aprendizagem e seu sentido utilitário para o aprendiz que dele participa em sua plenitude como organismo humano. “O ser vivo só adquire segurança quando se identifica intelectualmente com os elementos que o circundam e, mais ainda, quando prevê as conseqüências de seus atos; ele é capaz de moldar suas ações de acordo com o que prevê. O conhecimento possui um caráter “operante”, o que confere ao organismo a característica de não se restringir à mera contemplação passiva e desinteressada do mundo” (CUNHA, 1994, p. 29-30). Mesmo optando por concepções de educação baseadas por um lado no empirismo e de outro no que Cunha chama de filosofia da experiência de Dewey, aqueles idealizadores não expressam uma compreensão de avaliação que seja condizente com as idéias defendidas em termos de aprendizagem. Concebem-na como mecanismo de aferição intelectual. Provavelmente isso possa ser explicado pela opção psicológica de aptidão, de potencial do indivíduo que sob a ótica da psicologia comportamental podem observados e mensurados. Nesse documento o projeto de formação, na esteira dos princípios acima referidos, indica saberes a serem ensinados que podem ser caracterizados acentuadamente como saberes atitudinais, específicos, pedagógicos e didáticos (cfr,Tardif, 2002). Exemplos de saberes que permitam ao aluno apreender conhecimentos, quais sejam: os voltados para o cultivo de “virtudes morais”; para o exercício de experiências que permitam fazer julgamento; desenvolver qualidade de liderança e iniciativa; exercícios práticos por meio de estágios curriculares, entre outros. 3.2. Concepções e saberes de formação de professores no documento de 1972 O segundo documento datado do ano de 1972 consubstancia-se num Projeto de Implantação da Reforma do Ensino de 2º Grau para o Magistério ( Lei 5.692/71) e currículo para o aperfeiçoamento e atualização dos professores de 1ª a 4ª série do ensino de 1º graus (PIRMC)iii. Em função dos limites deste trabalho, e em decorrência da abrangência da estruturação de seus princípiosiv, nos deteremos em alguns de caráter filosófico, pedagógico, didático e psicológico. Com efeito, do ponto de vista filosófico as bases do currículo para o qual estaria direcionada a formação, é distinguida em “filosofia da idéia e filosofia da ação”. A filosofia da idéia é caracterizada como reflexão definida do seguinte modo: “a capacidade do indivíduo dirigir suas atividades com precisão e de planejar de acordo com os fins em vista ou propósitos de que é consciente” (grifos nossos). O entendimento desse tipo de filosofia se vincula a uma prática precisa previamente definida e organizada. Indica rigor técnico apontando para concepção tecnicista. Por outro lado, quando os idealizadores da formação de professores pensam a formação a partir de “uma filosofia da idéia” e de “uma filosofia da ação”, indicam, concomitantemente, a separação rígida entre teoria e prática. Contrariamente, idealizam que a “filosofia da idéia” atuará acompanhando reflexiva e criticamente a ação pedagógica e seus resultados, que advém, segundo esses sujeitos, dos fundamentos do método científico, que não estão especificados no texto do documento. A separação entre teoria e prática embora seja perseguida no sentido de superação, manifesta-se com vigor na seguinte passagem: “enquanto a teoria faz da realidade um objeto de pensamento e de contemplação, a prática a transforma num meio de desenvolvimento e de criação” (PIRMC, p. 3). A “filosofia da ação” também seria alicerce para a relação entre a escola e a comunidade na proporção em que concorreria para exercer influência integradora na ação educativa. Ela se concretizaria pela presença dos pais através da colaboração e da participação, sugerindo a melhoria no atendimento dos alunos e no processo pedagógico (idem, p. 4). Embora a idéia seja inovadora do ponto de vista da gestão, ela se manifesta até certo ponto ilusória, levando em conta o contexto sócio-político de então. Por outro lado, a filosofia da ação sugere proximidade com o ideário escolanovista, assim como o de reflexão. Com efeito, é possível dizer então que estamos diante de duas racionalidades distintas que se entrecruzam: uma técnica e outra científica a escolanovista, propiciada principalmente pela reflexão, condição dada pela observação. Em se tratando de cultura escolar no entendimento apontado acima por Viñao, a primeira representaria uma possibilidade de mudança trazida tanto pela Lei educacional de 1971, quanto pelas exigências econômicas do mercado de trabalho para o qual a escola, em seus diferentes níveis deveria estar voltada em termos de formação de mão de obra tecnicamente qualificada o que, por sua vez deveria corresponder a uma razão eficiente do sistema de ensino. A outra significaria a permanência, o que sobrevive aos ideais trazidos pela reforma. Alguns princípios pedagógicos, didáticos e psicológicosv merecem ser aqui tratados pela curiosidade que despertam ante uma apreciação ainda que preliminar. Posicionando-se desde uma perspectiva eclética o grupo idealizador da formação de professores, recorre à psicologia para evidenciar como matriz o princípio do “aprender a aprender”vi que ensejaria mudanças no comportamento do aprendiz. Lembremos ser este um princípio que faz parte do ideário da educação nova, norteador das aspirações de formação que constam daquele documento. Estritamente vinculado à psicologia da aprendizagem, calca-se na interpretação comportamental acentuadamente escolanovista com nuances tecnicista, principalmente no primeiro princípio entre os listados a seguir. Assim vejamos: “Princípio das necessidades e das diferenças individuais: O atendimento, de forma positiva, às necessidades básicas do professorando (de natureza física, social, e integrativa) condiciona, em grande parte, seus mecanismos de aprendizagem, apontando seus interesses e permitindo um equilíbrio dinâmico e estável do comportamento do aluno. A aprendizagem se efetiva melhor, quando o aluno tem oportunidade de trabalhar de maneira pessoal, pois os indivíduos diferem uns dos outros em aptidões específicas, interesses, métodos de trabalho, ritmo de aprendizagem”; “Princípios da motivação: a aprendizagem se realiza melhor quando tiver para o aluno um significado vital, isto é, corresponder a um fim, razão explicativa de qualquer ação (motivo)”; “Princípios da situação-problema: A aprendizagem se efetiva mais quando o professorando receber desafios através de situações problemáticas que o levem a pensar e a comprovar suas hipóteses e a constar por si próprio a validade das mesmas”; “Princípios da ação: toda aprendizagem se efetiva melhor quando implica em atividade (motora) ou pesquisa (emocional e intelectual), que leva o aprendiz a modificar seus modos de perceber, pensar, sentir e agir, ou seja, aprender” (PIRMC, p. 5-6). Em Dewey (Cunha, 1994) podemos encontrar tanto a idéia do significado do conteúdo da aprendizagem para o aprendiz quanto a de ação no processo de aprender que são, digamos assim, categorias subjacentes à maioria dos princípios acima citados. Vale destacar, correspondentemente a esse ideário, os saberes que mais se aproximam dos domínios que os alunos deveriam possuir: sobre a escola progressista para uma civilização em mudança; método de projetos, fundamentação, origem e princípios e sua aplicação; fases, origem, crítica, ao método de resolução de problemas, instrução programada, base psicológica do método, tipos, valor e criticas. Temos então exemplos de saberes específicos que se articulam com saberes pedagógicos e, de certo modo, com saberes técnicos curriculares. 3.3. Concepções e saberes de formação no Projeto de formação de professores para a educação pré-escolar do ano de 1978 O terceiro documento, um Projeto de Formação de Professores para a Educação Pré-escolar (PFPEPE), datado de ano de 1978, tem seu ideário formador organizado de maneira bastante diferente do anterior. Traz, entre outras, compreensões relacionadas à legislação, às condições econômico-sociais das crianças, ao problema da retenção nas primeiras séries, o que permite depreender sobre uma visão compensatória desse nível de escolarização. Entretanto dois elementos se manifestam como centrais e que permitem articulação com ideários apreciados no documento anterior. Um deles se refere ao caráter científico da formação do professor do qual dependerá a educação das crianças. Nesse sentido temos: “a formação do professor de base científica só poderá ser realizada em curso específico, em instituições devidamente credenciadas para tal fim”; “não basta oferecer às crianças educação pré-escolar, é necessário que essa educação se apóie em fundamentos científicos de modo a proporcionar às crianças as experiências adequadas ao seu nível de desenvolvimento” (PFPEPE, p. 8). Nota-se que permanece a preocupação com a formação de base científica, herança montessorianavii e escolanovista e, ao mesmo tempo, credencial para a instância formadora. O outro elemento se refere ao vinculo com a psicologia da educação/aprendizagem, o que, de certo modo, parece ser uma marca registrada que tem acompanhado os propósitos de formação para o infante. Com efeito, “os primeiros anos de vida são decisivos para o desenvolvimento das potencialidades do ser humano e para uma progressiva interação com o meio social”, que não está descolada de ideário da educação nova. Neste aspecto Cunha, discorrendo sobre a filosofia de Dewey (1994, p. 30) diz que a experiência, conceito básico da filosofia deweyana, significa a “interação do organismo e do meio ambiente, que redunda nalguma adaptação para melhor utilização deste meio ambiente”. No processo de formação para atuação com o pré-escolar, o professor deve ter a compreensão de que “o desenvolvimento e a maturação dependem, essencialmente, de estímulos ambientais de natureza sócio-cultural” (idem). O trecho a seguir contribui mais uma vez para ratificar o ideário de formação contido nesse último documento. “O ser biológico, com suas características peculiares herdadas, vai sendo moldado pelo meio social e tendo que se acomodar ao ambiente em que vive. Essa acomodação, porém, não é passiva; o homem não recebe as configurações culturalmente determinadas como se um molde se impusesse sobre ele; pelo contrário, vai modificando, pouco a pouco, as injunções do meio e adequando-as às suas necessidades. Enfim, o que define o homem e estabelece o conhecimento que este irá formalizar é o processo de interação entre o organismo biológico e o meio sócio-cultural” (CUNHA, p. 30-31). No que pese aos saberes para esse tipo de formação, o documento, ao apresentar sua grade curricular, de certo modo anuncia aqueles que deveriam ser ensinados, por meio das deferentes disciplinas. Entretanto como não há detalhamento das mesmas, optamos por referi-los levando em conta os objetivos gerais da formação. Assim temos entre outros: “reflexão sobre os fins e valores da educação no sistema brasileiro”. Finalidade que se aproxima do universo dos saberes relacionados a atitudes. Além desses estão os vinculados às grandes finalidades educativas, tais como a formação para a cidadania, por exemplo. Saberes específicos e saberes didáticos curriculares estão assim delineados: “conhecimentos das bases científicas para elaboração de um plano curricular” e, familiarização com as técnicas de trabalho indicadas para: recrear o pré-escolar dando-lhe oportunidades múltiplas para se liberar tensões”. Destaque-se que o conhecimento de base científica, exigência para elaboração do plano curricular aponta para a conexão com o princípio de formação de base científica. Considerações finais. Das breves apreciações sobre os três documentos, um aspecto importante chama atenção e que se torna fator de articulação entre eles: o valor atribuído ao caráter científico da educação por meio do exercício da experiência que ora se confunde com experiência científica, ora se aproxima de experiência de vida. Chama atenção no documento de 1972, cuja finalidade é ser objeto de implantação da Reforma do Ensino de 2° grau, o fato de trazer, na totalidade de seu ideário pedagógico princípios advindos da educação nova. Outra questão que também desperta curiosidade é o desejo de educar para a sociedade democrática, mesmo no interior da vigência do regime político autoritário, o que os tornam coerentes na medida em que primam pelo ideário escolanovista e sustentação democrático-liberal. Em contrapartida revelam um distanciamento da escola em relação aos acontecimentos políticos e sociais do tempo histórico no qual foram prozidos. Embora os princípios formadores se manifestem dessa maneira, particularmente no Projeto do ano de 1972, a estrutura curricular está organizada conforme características próprias de currículos lineares, tecnicista, orientada por objetivos instrucionais, por exemplo. De Certeau (1994), já alertava para o exercício da “tática” que os sujeitos usam para fazer valer suas “crenças” para não ter que abrir mão delas totalmente. O sujeito “tem constantemente que jogar com os acontecimentos para transformá-los em “ocasiões”” (idem, p. 47). De modo geral constata-se também a articulação entre concepções e saberes quer por meio de livros destinados à leitura dos alunos, quer de atividades a ser realizadas nas diferentes disciplinas. As constatações que precisam ser ainda melhor pormenorizadas nos levam a inferir sobre o que temos refletido em termos de ideário pedagógico no sentido de que o mesmo não tem se constituído de maneira homogênea em certo tempo e espaço históricos. O que fundamenta este ponto de vista é a passagem de Bourdieu (1983) sobre o que os sujeitos fazem com os objetos que lhes são impostos. Nos Projetos dos anos 70, a imposição é representada pelo imperativo da legislação ao qual têm que ajustar-se. Alem disso, não podemos perder de vista o regime político de exceção do período durante o qual esses documentos foram elaborados. Os pressupostos de formação são democráticos, por um lado, e, por outro, não se ajustam aos ditames da legislação quando apregoam a formação sumamente orientada segundo o modelo da educação nova. Tais constatações mostram que a escola possui um modo próprio de lidar com suas questões, neste particular com a formação de professores. Esta particularidade lhe atribui singularidade por meio de seus projetos formadores, ainda que a política de Estado incite para a formação homogênea na dimensão do projeto político maior. O motor móvel da formação são os sujeitos que os transfiguraram em projetos segundo suas “crenças” formadoras, o que denota uma das dimensões da cultura escolar, ou seja, dos significados próprios à instituição educativa. Neste sentido, cabe refletir também sobre o conceito de habitus elaborado por Bourdieu (1983), na tentativa de entender a permanência numa Instituição de formação de professores de um ideário de educação que em muito se articula com pressupostos da educação nova. As idéias estão incorporadas às pessoas e, assim sendo é difícil desprender-se delas, ainda que outras influências venham a manifestar-se. 1 Versão modificada e ampliada em relação à apresentada no VI Congresso Luso-Brasileiro de História de Educação, realizado em Uberlândia/MG de 17 a 20 de abril de 2006. Trata-se de resultado preliminar de pesquisa. ? Professora do Programa de Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. i Reunião realiza no dia 22/01/1965. ii No conjunto dos passos a serem seguidos pela Comissão estavam: “elaborar os objetivos do curso normal; discutir a organicidade do planejamento, em face das atuais condições de vida; consultar a literatura relacionada com o problema e traçar instrumentos de trabalho; apreciar relatórios escolares de formação de professores; analisar os diversos sistemas nacionais e alguns internacionais marcantes quanto à formação de professores; proceder a considerações sobre: a). as mutações sociais; demográficas técnicas, de nível de vida, e de relações humanas quanto a realidade local; 2. a forma pela qual é feito o recrutamento dos candidatos a magistério; 3. o grau de aproveitamento acadêmico e a competência profissional dos formandos; 4. sobre os padrões nacionais, estaduais e locais, quanto à descentralização de atribuições; 5. quanto aos motivos que conduzem o indivíduo ao curso de formação de professores e os que se afastam; 6. a respeito da divisão temporal, duração, níveis, e diferenciação de estudos; 7. quanto a dosagem de cultura geral e profissional; 9. um período mais extenso de preparação necessária à vida profissional social; 10. concluir sobre um currículo qualitativo que resultasse na melhor maneira de orientar os jovens para as suas obrigações e deveres como profissionais e homens. iii Participaram da elaboração desse documento uma supervisora pedagógica e três professoras colaboradoras. Estas últimas pertencentes ao Curso Normal e aos cursos Especiais do Instituto de Educação do Paraná, segundo consta do desse documento. iv Os fundamentos da Proposta estão assim dispostos: Reorganização curricular compreendendo: princípios filosóficos e objetivos básicos do estabelecimento; princípios Pedagógicos, didáticos e psicológicos que presidem o currículo, subdividido em nove princípios e Currículo Pleno do 2º grau. v Os indicadores desses princípios constam: das necessidades e das diferenças individuais; da motivação; da situação problema; da ação; da experiência anterior; da integração; da socialização; dos resultados imediatos e da transferência em situações. vi Esse principio faz parte de uma unidade dentro do Programa de Didática e Prática de Ensino. Nele estão referidos os seguintes autores para serem lidos correspondentemente a evolução do pensamento pedagógico: Ratke, Comenius, Locke, Pestalozzi, Herbart, Kerschenteiner, Montessori, Claparède, e Dewey. vii Essa relação pretende ser melhor investigada. Referências Bibliográficas BOURDIEU, P. Sociologia. ORTIZ, R. (Org.). São Paulo: Ática, 1983. CHERVEL, A. Histórias das disciplinas escolares; reflexões sobre um campo de pesquisa: In: Teoria Educação. nº 2, 1990. CUNHA, M. V. da. John Dewey: uma filosofia para educadores. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: RJ: Vozes, 1994. DEWEY, J. A criança e o programa escolar. In: Vida e educação. Trd. Anísio Teixeira. São Paulo: Melhoramentos, 1971. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983. JULIA, D. A Cultura escolar como objeto histórico. In: Revista brasileira de história da educação. SBHE: Autores Associados, nº 1, jan., jun., 2001. 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