Projeto de alunos de Engenharia Elétrica da UFPR transforma-se em startup premiada após desenvolver tecnologia assistiva que amplia a autonomia de pessoas cegas nas cidades.
Um trabalho de conclusão de curso (TCC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) deu origem à startup Trajeto Livre, formada pelos engenheiros eletricistas João Alfredo Santana e Evandro Vicente de Oliveira Ferreira. A dupla desenvolveu um dispositivo inovador para auxiliar pessoas com deficiência visual na locomoção urbana, uma solução que nasceu na sala de aula e já conquistou prêmios regionais e nacionais em inovação.
Desafio da mobilidade para deficientes visuais
A falta de visão impõe obstáculos severos à mobilidade cotidiana. Estima-se que existam cerca de 6,5 milhões de pessoas cegas ou com baixa visão no Brasil, e a bengala longa, principal ferramenta de auxílio, só permite identificar obstáculos abaixo da linha da cintura. Isso significa que perigos como galhos de árvore, orelhões, placas suspensas ou mesmo buracos elevados podem passar despercebidos, causando acidentes.
Foi diante desse problema de acessibilidade que os então estudantes da UFPR decidiram agir. “Percebi as dificuldades que vizinhos com deficiência visual enfrentam para se locomover. Buscamos um tema de TCC que trouxesse um ganho para a sociedade e retribuísse o ensino de alta qualidade oferecido pela UFPR de forma gratuita”, conta João Alfredo Santana, coautor do projeto. A ideia de criar um equipamento assistivo surgiu dessa vivência pessoal e do desejo de aumentar a autonomia e a segurança dos deficientes visuais na cidade.
Inovação surgida no TCC
Sob orientação dos professores André Bellin Mariano e Bruno Pohlot Ricobom, Santana e Ferreira desenvolveram um dispositivo eletrônico capaz de detectar obstáculos não percebidos pela bengala tradicional. O protótipo, apresentado como TCC em março de 2023, utiliza sensores ultrassônicos e infravermelhos posicionados acima da linha do joelho, acoplados à bengala ou ao corpo do usuário. Esses sensores mapeiam desde irregularidades no piso até objetos na altura da cabeça. Os dados são processados por um microcontrolador que aciona pequenos motores vibratórios em uma pulseira. A intensidade e o padrão das vibrações variam conforme a distância e a posição do obstáculo, permitindo ao usuário interpretar os alertas de forma intuitiva. Em testes realizados com apoio do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), o dispositivo mostrou potencial para complementar a bengala convencional e tornar a locomoção muito mais segura.
Além dos desafios técnicos de eletrônica envolvidos, os alunos se preocuparam com aspectos práticos e sociais do projeto. Foi preciso definir um tamanho ajustável do aparelho que atendesse a usuários com diferentes estaturas, bem como manter o custo final acessível para viabilizar a adoção em larga escala. “Eles poderiam confortavelmente ter feito algo bem limitado, que já fornecesse o necessário para concluir o curso, mas preferiram encarar um problema da sociedade”, destaca o professor André Mariano, orientador do TCC. “Não só fizeram isso com todo o critério técnico da eletrônica, mas também com uma sensibilidade incrível para entregar à sociedade uma solução importante para ajudar pessoas com deficiência”, ressalta o docente. Esse rigor técnico aliado ao propósito inclusivo rendeu ao trabalho destaque na revista técnico-científica do Crea-PR, que publicou a iniciativa dos estudantes entre os projetos de inovação de 2023.
Da universidade à virada empreendedora
Desde o início, os jovens inventores deixaram claro que o objetivo era que o produto fosse mais do que um mero trabalho acadêmico e chegasse às ruas, beneficiando efetivamente quem precisa. O primeiro passo nesse sentido ocorreu ainda durante o desenvolvimento do TCC: em novembro de 2022, eles apresentaram o protótipo no 5º Pitch Day da UFPR, uma feira universitária de tecnologia e inovação, onde receberam feedbacks valiosos para aperfeiçoar a solução. Com o dispositivo já funcional, a meta dos recém-formados passou a ser tirar a ideia do papel e transformá-la em um negócio de impacto. “A ideia é divulgar o trabalho em novas oportunidades que surgirem, em busca de conquistar suporte ou parceria para transformar o dispositivo em um negócio sustentável”, explicou João Alfredo, já vislumbrando o potencial empreendedor da invenção.
Não demorou para que a trajetória acadêmica evoluísse para o mundo das startups. A dupla ingressou no programa Iniciativa Startup Experience (ISE), parte do ecossistema de inovação i9UFPR, uma pré-incubadora que ofereceu capacitação empreendedora, mentoria e acesso a uma rede de inovação dentro da universidade. Desenvolvida com apoio do programa ISE, a Trajeto Livre logo se tornou exemplo do potencial transformador desses projetos estudantis. O caso demonstra “a força da metodologia Iniciativa Startup Experience, que foca na criação de valor e desenvolvimento de soluções inovadoras” dentro da UFPR. Em outras palavras, o ambiente universitário colaborou para que aquela ideia nascida no TCC evoluísse para uma startup de base tecnológica com propósito social. Sob orientação do professor Mariano e apoio de diversas iniciativas da UFPR, João e Evandro aprimoraram o modelo de negócio e ampliaram a visibilidade do projeto.
Prêmios e reconhecimento nacional
Em pouco tempo de existência, a Trajeto Livre já coleciona premiações importantes. No primeiro semestre de 2024, a startup conquistou o 1º lugar no Pitch Day LapaTec, competição de projetos inovadores realizada durante a inauguração do Parque Tecnológico SaberTec, na cidade da Lapa (PR). O evento, com participação de diversas startups paranaenses, consagrou a Trajeto Livre como o melhor pitch da edição, validando a solução perante investidores e especialistas do setor. “Ficamos felizes por sermos premiados como o melhor pitch na inauguração do parque tecnológico da Lapa”, celebraram os fundadores em comunicação nas redes sociais, ao receberem o troféu do Pitch Day. Essa vitória também representou mais um marco para a UFPR, que viu uma ideia surgida em sala de aula ganhar projeção no emergente polo tecnológico regional.
A projeção alcançada localmente pavimentou o caminho para voos mais altos. Em 2025, a Trajeto Livre obteve reconhecimento em nível nacional ao figurar entre os dez projetos selecionados no Desafio de Inovação: Bengalas Inteligentes, concurso promovido pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) em parceria com o Governo do Paraná. A iniciativa buscou as melhores soluções tecnológicas do país para melhorar a eficiência das bengalas utilizadas por pessoas cegas. Foram inscritas mais de 100 propostas de todo o Brasil, e a Trajeto Livre ficou entre as 10 finalistas contempladas com recursos para desenvolvimento do protótipo. Cada projeto selecionado recebeu um aporte inicial de R$ 90 mil para aprimorar suas tecnologias em um período de aceleração de 90 dias, ao fim do qual as soluções serão testadas por usuários reais. Caso obtenham os melhores resultados, os finalistas ainda concorrerão a prêmios adicionais somando R$ 1 milhão, sendo R$ 500 mil destinados ao vencedor final. A inclusão da Trajeto Livre entre os finalistas do desafio ABDI evidencia a qualidade e o potencial de impacto da invenção paranaense em âmbito nacional.
Trajeto Livre recebendo o prêmio MELHOR TCC EM ENGENHARIA ELÉTRICA pelo CREA-PR
Impacto social e legado na UFPR
O percurso da Trajeto Livre ilustra como a universidade pode ser um berço fértil de inovação com impacto social. Em menos de dois anos, o projeto evoluiu de um TCC acadêmico para uma startup reconhecida, sempre mantendo o foco no propósito inicial: facilitar a mobilidade e a inclusão de pessoas com deficiência visual. Para os fundadores, o aprendizado técnico e o apoio institucional foram determinantes. Eles creditam à UFPR não apenas a formação de excelência, mas também a oportunidade de vivenciar empreendedorismo na prática. Programas como o i9UFPR (Ecossistema de Inovação) criaram um ambiente em que ideias inovadoras puderam ser modeladas, testadas e conectadas a demandas reais da sociedade. “De certa forma, estamos retribuindo tudo o que aprendemos na universidade, entregando uma solução que pode melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas”, afirma Evandro Vicente Ferreira, reforçando o compromisso social da iniciativa.
Enquanto avança nas etapas finais do desafio nacional de bengalas inteligentes, a Trajeto Livre segue aprimorando sua tecnologia e dialogando com usuários e especialistas para tornar o produto viável comercialmente. A startup também busca parcerias para produção em escala e distribuição do dispositivo a quem mais precisa. Independentemente dos resultados das próximas competições, a jornada de João Alfredo Santana e Evandro Ferreira já deixa um legado inspirador na UFPR. O caso da Trajeto Livre demonstra como a combinação de conhecimento acadêmico, consciência social e espírito empreendedor pode gerar soluções inovadoras de alto impacto, alinhadas tanto às necessidades da comunidade quanto às tendências de tecnologia assistiva. Em outras palavras, uma verdadeira lição de que a ciência e a inovação podem, e devem, caminhar de mãos dadas com a inclusão.
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